Mater Natura e os 25 anos da descoberta e conservação do bicudinho-do-brejo: uma história de amor e perseverança

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14 de março de 2021, notícia publicada pelo Mater Natura – Instituto de Estudos Ambientais.

O Mater Natura caminha para completar 38 anos de sua criação, em agosto próximo. Essa longevidade é um fato raro em um país em que a sociedade civil não é reconhecida e apoiada pelos poderes constituídos e por parte da cultura popular. Em quase quatro décadas, essa OSCIP desenvolveu 97 projetos técnicos patrocinados por 46 instituições públicas ou privadas, nacionais e internacionais.

Nesta longa trajetória se acumula uma bagagem de histórias diversas e múltiplas, dentre a qual apontamos um projeto que se confunde com a identidade institucional do Mater Natura, o Projeto Bicudinho-do-brejo. O bicudinho-do-brejo (Formicivora acutirostris – Figura 1) é uma pequena ave com 9.5 g de massa corporal e 14 cm de comprimento que vive em brejos de parte do litoral sul do Brasil e é reconhecida como ameaçada de extinção. Esse reconhecimento aconteceu dois anos após a sua descoberta, mediante a Portaria 62 do IBAMA, de 17 de junho de 1997.

Já a descoberta, ocorreu em meados de 1995 no município de Matinhos pelos pesquisadores associados ao Mater Natura, Marcos Ricardo Bornschein e Bianca Luiza Reinert. Por ser ave não catalogada, a descrição formal de sua existência para os anais da ciência aconteceu em dezembro de 1995, em trabalho publicado conjuntamente com o Prof. Dante M. Teixeira, do Museu Nacional do Rio de Janeiro.

Fêmea de Bicudinho-do-brejo. Foto: Ricardo Bemonte Lopes.
Figura 1: Fêmea de Bicudinho-do-brejo. Foto: Ricardo Bemonte Lopes.

Entre 1996 e 2000, os biólogos Bianca e Marcos mobilizaram um conjunto de ONGs e instituições (Mater Natura, Liga Ambiental, Fundação Grupo Boticário de Proteção à Natureza – FGBPN, Fundação MacArthur, American Bird Conservancy – ABC e Fundo Nacional do Meio Ambiente – FNMA/MMA) para desenvolver a primeira ação em apoio à nova espécie recém-descoberta: a prospecção de uma ampla área geográfica visando determinar a possível existência de novas populações da espécie.

Trabalhando-se do litoral sul de São Paulo ao litoral sul de Santa Catarina, a equipe do projeto detectou a espécie ocorrendo em oito populações isoladas na faixa costeira desde a baía de Antonina, no Paraná, ao rio Itapocu, em Santa Catarina (Figura 2), em altitudes variando do nível do mar até cerca de 5 m. Nessa região, efetuou-se o “mapeamento” dos nove ambientes de ocorrência da espécie (escala 1:25.000).

Figura 2. Mapa com as áreas de distribuição das oito populações do bicudinho-do-brejo, levantadas por projetos apoiado pelo FNMA, FGBPN e ABC (1998 a 2000). Publicado na Revista Brasileira de Ornitologia 15(4): 493-519, dezembro de 2007 (link: https://repositorio.unesp.br/handle/11449/70161).
Figura 2. Mapa com as áreas de distribuição das oito populações do bicudinho-do-brejo, levantadas por projetos apoiado pelo FNMA, FGBPN e ABC (1996 a 2000). Publicado na Revista Brasileira de Ornitologia 15(4): 493-519, dezembro de 2007.

Esses projetos também contribuíram para quantificar o tamanho da área geográfica de ocorrência da espécie, estimado em 6.060 hectares, e o tamanho da população global, estimada em 17.700 indivíduos.

Entre 2006 a 2009 foi iniciado um novo projeto do Mater Natura intitulado “Ecologia e comportamento do bicudinho-do-brejo”, com financiamento da Fundação Grupo Boticário de Proteção à Natureza. O objetivo principal do estudo era o levantamento de dados ecológicos, fundamentais para consolidar ações de conservação em curso e subsidiar novas, como dieta alimentar, ciclo reprodutivo, organização social e territorialidade. Foram feitos campos mensais e dois grandes ciclos de seis meses de pesquisa, de setembro a fevereiro de 2006 a 2007 e de 2007 a 2008, nos quais se foi ao campo em todos os dias, exceto em 25 de dezembro. Como métodos principais, se fez captura das aves para a marcação com anilhas de identificação e filmagens. Estes estudos foram realizados na região da baía de Guaratuba, litoral do Paraná, onde se localiza a maior e mais bem conservada população do bicudinho-do-brejo.

A conservação do bicudinho-do-brejo depende de ações práticas, como o controle da contaminação biológica de seus ambientes pela invasão das braquiárias-d´água (Figura 3), no caso duas espécies de capins exóticos introduzidos da África. Esses capins estão disseminados em todo o Brasil e o seu controle nos ambientes do bicudinho-do-brejo é ação para todo o sempre, visto a contaminação sempre retornar pelos rios que transportam aos brejos pedaços desses capins com a correnteza. Em 2012 e 2013, o Mater Natura conduziu um projeto pioneiro no Brasil concebido para desenvolver técnicas de controle desses capins. E deu certo. Desenvolveu-se uma técnica de sucesso que permitiu erradicar localmente as plantas africanas e reconstituir a vegetação natural em menos de um ano. Em função disso, entre 2014 a 2017 este projeto foi ampliado em um programa com o objetivo de erradicar várias áreas contaminadas por essas braquiárias na APA de Guaratuba, sendo ambos patrocinados pela FGBPN (Figura 4).

Em 2015, o Mater Natura firmou parceria com a empresa Faber-Castell para a execução do projeto “Pró Áreas Úmidas: Manejo de Braquiárias-d´água na Fazenda da Faber-Castell em Guaratuba (PR)”, que visava ampliar a extensão geográfica do manejo para a área dessa empresa na Lagoa do Parado, importante planície de alagamento de rara beleza no município de Guaratuba. Recentemente, o Mater Natura retomou o manejo dos capins africanos mediante recurso de compensação ambiental por atividade de degradação da natureza repassados pela 1ª. Vara Federal de Paranaguá, da Justiça Federal do Paraná, para um projeto a ser desenvolvido de 2020 a 2021.

 

Equipe efetuando corte manual das braquiárias.
Figura 3. Equipe efetuando roçada e capina das braquiárias-d’água.
Figura 1. Área que originalmente era um brejo de ocorrência do bicudinho-do-brejo e que estava invadida por braquiárias-d'águaafricanas. As pilhas são a biomassa seca após roçada. Os bambus fixam as pilhas para não serem carregadas pela maré alta (no caso, a maré está apenas começando a encher). Foto: Marcos R. Bornschein (2015).
Figura 4. Área que originalmente era um brejo de ocorrência do bicudinho-do-brejo e que estava invadida por braquiárias-d’água africanas. Foto: Marcos R. Bornschein (2015).

As pilhas são a biomassa seca após roçada. Os bambus fixam as pilhas para não serem carregadas pela maré alta (no caso, a maré está apenas começando a encher).

Os grandes avanços nas pesquisas e ações de manejo para a conservação do bicudinho-do-brejo levaram essas iniciativas a serem uma dentre seis projetos nacionais contemplados pelo programa E-Cons (Empreendedores da Conservação), mantido pela Sociedade de Pesquisas em Vida Selvagem – SPVS, com o patrocínio do HSBC Brasil, em 2012-2013. O programa visava, entre outros aspectos, fortalecer os recursos humanos na captação de apoios e formação de parcerias para dar fôlego e longevidade às ações de conservação.

Em 2009, foi publicado pelo Instituto Ambiental do Paraná (IAP) o plano de conservação de espécies estaduais ameaçadas de extinção. Associados do Mater Natura efetuaram o Plano de Conservação do bicudinho-do-brejo, que destacou ações necessárias para a sua proteção e perpetuidade, dentre as quais a necessidade de se fazer uma avaliação da variabilidade genética da espécie. Entre 2012 e 2015, o Mater Natura desenvolveu o projeto “Implantação do plano de conservação do bicudinho-do-brejo”, patrocinado pelo Fundo Brasileiro para a Conservação da Biodiversidade – FUNBIO, efetuando o tão aguardado estudo de variabilidade genética. Entre outros resultados, salienta-se a atualização das estimativas de área de ocorrência e tamanho populacional da espécie.

Os estudos genéticos então efetuados com o bicudinho-do-brejo revelaram baixa variabilidade genética e necessidade de se efetuar translocação de genes, ou seja, como mais tradicionalmente se faz, translocação de indivíduos entre populações para que sejam “enriquecidas” com novos genes. Foi com esse objetivo que o Mater Natura iniciou em 2018 um dos projetos mais arrojados de translocação de genes do país, o de os translocar na forma de ovos, para evitar eventual disseminação de doenças entre populações e consequentes análises sanitárias em aves tão pequenas e frágeis. Coordenado por Marcos R. Bornschein e executado conjuntamente com Tiago Machado de Souza, Larissa Teixeira e João Arthur Scremim, os pesquisadores trocam ovos de ninhos de bicudinho-do-brejo entre as populações da espécie do rio Nhundiaquara, em Morretes, e baía de Guaratuba. De forma absolutamente concatenada, ninhos da espécie contendo ovos que estão pelo menos no décimo dia de incubação encontrados em Morretes e Guaratuba são removidos para um isopor e colocados em caixas térmicas para que as equipes de cada local as troquem no meio do caminho entre essas localidades. Trocadas as caixas térmicas, ovos de ninhos de Guaratuba são colocados nos ninhos de onde foram retirados os ovos de Morretes, e vice-versa. E enquanto esse processo ocorre, para que os bicudinhos-do-brejo não abandonem seus ninhos cujos ovos foram retirados, os pesquisadores colocam neles ovos falsos de plástico, pintados semelhantemente aos originais. Uma vez que esses ovos eclodam e os filhotes escapem de predação e alagamento dos ninhos pelas marés altas, e se reproduzam deixando descendentes, consolidarão a troca de genes e consequente aumento de variabilidade genética. Esse projeto, que se encerra em 2021 e conta com patrocínio da Fundação Grupo Boticário de Proteção à Natureza e parceira com a Universidade Estadual Paulista, Câmpus do Litoral Paulista, é hoje um marco para subsidiar estudos similares com outras aves insetívoras de pequeno porte.

Em 2009, associados do Mater Natura (Bianca L. Reinert, Marcos Bornschein, Ricardo Belmonte-Lopes, Iracema Suassuna de Oliveira e Christoph Hrdina) adquiriram uma área no interior da baía de Guaratuba para estabelecer a Reserva Bicudinho-do-brejo. Essa iniciativa particular foi apoiada por projeto conduzido pelo Mater Natura entre 2015 e 2017, com patrocínio da Fundação Grupo Boticário de Proteção à Natureza, que visava apoiar a titulação da área como Reserva Particular do Patrimônio Natural Bicudinho-do-brejo.

Bianca L. Reinert (ao centro) e colegas na entrada da Reserva Bicudinho-do-brejo.
Figura 5. Bianca L. Reinert (ao centro) e colegas na entrada da Reserva Bicudinho-do-brejo.
70_Mirante da Reserva Bicudinho-do-brejo- Foto Hudson Garcia
Figura 6. Mirante da Reserva Bicudinho-do-brejo. Foto Hudson Garcia

Outro importantíssimo resultado de projeto conduzido pelo Mater Natura com ênfase em proteção de áreas foi formular um estudo para que o Comitê Nacional de Zonas Úmidas – CNZU, vinculado ao Ministério do Meio Ambiente, propusesse à Convenção Ramsar a criação de um novo Sítio Ramsar no país, o da Baía de Guaratuba. Essa proposta teve êxito e o Sítio Ramsar foi criado em setembro de 2017, com uma área aproximada de 40 mil hectares que protege as maiores extensões de áreas úmidas preservadas do litoral sul do Brasil e abriga 33% da população do bicudinho-do-brejo.

Após 25 anos de descoberta do bicudinho-do-brejo e de quase igual período em que o Mater Natura vem apoiando a equipe técnica que descobriu a espécie, as pesquisas com ela continuam até o presente momento, pela importância que os dados têm para revelar impactos da mudança climática. A espécie vive em brejos que são alagados diariamente pelas marés altas e os efeitos desse alagamento são previstos aumentarem continuamente em função do aquecimento global. Muitos resultados importantes foram obtidos além dos destacados, como o impacto do alagamento de ninhos na redução do tamanho populacional e a longevidade da espécie. Um bicudinho-do-brejo pode viver até 16 anos de idade, por exemplo, e pode levar seis anos para que um casal consiga ter sucesso reprodutivo e deixar ao menos um descendente. Ainda, se revisou estimativas prévias, verificando-se que a espécie se distribui em 10 populações isoladas, do litoral central do Paraná ao litoral norte do Rio Grande do Sul, cuja área somada totaliza diminutos 4.574 hectares, e que a população global é estimada hoje em 6.742 indivíduos.

Sem dúvida, nos próximos anos e décadas, o Mater Natura vai continuar assumindo o compromisso de batalhar pela conservação do bicudinho-do-brejo, tarefa em que desejamos contar com o apoio de instituições públicas e privadas, de empresas e da comunidade em geral.

Figura 2. Pesquisador do Mater Natura transportando ovos de bicudinhos-do-brejo em caixa térmica, a qual não pode ser apoiada para não propagar impacto aos ovos. Foto: Larissa Teixeira.
Figura 7. Marcos Bornschein transportando ovos de bicudinhos-do-brejo em caixa térmica, a qual não pode ser apoiada para não propagar impacto aos ovos. Foto: Larissa Teixeira.

 

 

Bianca Reinert segurando um exemplar do bicudinho-do-brejo.
Figura 8. Bianca Reinert segurando um exemplar do bicudinho-do-brejo.

Conforme mencionado no texto, Bianca e Marcos foram os pesquisadores que descobriram o Bicudinho-do-brejo, Bianca tinha uma grande paixão pela conservação da espécie, mas infelizmente faleceu em 2018, após lutar bravamente contra o câncer.

Bianca, foi homenageada em um episódio da série “A Grande Reserva da Mata Atlântica”. Clique neste link e conheça um pouco mais desta história e sua importância para a conservação.

 

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